O coração do Paço Real: Um porto seguro na baixa lisboeta
No coração da baixa lisboeta, na Rua da Conceição, há um espaço que é muito mais do que um restaurante. O Paço Real, gerido há 26 anos pelo Sr. Carlos, não é apenas um local de refeições, mas um verdadeiro refúgio para aqueles (neste caso, aquelas) que ali encontram companhia, apoio e segurança.
Entre os rostos familiares que preenchem diariamente as mesas do restaurante, destacam-se três senhoras: a D. Dores, de 95 anos, a D. Ana Maria, de 74, e a D. Maria Alexandrina, de 89. Todas elas encontraram no restaurante um ponto de apoio, um lugar onde sabem que são cuidadas, escutadas, acarinhadas e, sobretudo, esperadas.
O Sr. Carlos nunca planeou fazer parte do projeto RADAR. Simplesmente, “sempre esteve ali”, atento às pessoas que cruzavam a sua porta e necessitavam de um olhar atento. “A D. Dores mora aqui ao lado. Se o elevador não está a funcionar, a primeira coisa que ela faz ao acordar sabe o que é? É telefonar-me, para eu a ajudar”, conta o proprietário do restaurante. “Isto é assim há 26 anos”. Ela até me chama de ‘paizinho'”, conta, com um sorriso de quem sabe que sua presença faz diferença. A diferença!
A relação com as três senhoras vai muito além do restaurante. Houve vezes em que a D. Dores não atendia o telefone e, preocupado, Carlos ia até sua casa para confirmar se estava bem (tem uma cópia da chave para situações de emergência). Já chegou a deixar, no Natal, a sua família à espera para levar-lhe o almoço. Em momentos de internamento hospitalar, foi ele que recebeu o telefonema da senhora, para lá da meia-noite, a dizer que tinha tido alta. “Por mais de uma ocasião, a D. Dores recebia a notícia da ‘alta’ já de madrugada. Como é que ela ia para casa àquela hora? Chamava um táxi, sozinha, com noventa e tal anos? Eu não podia deixar que isso acontecesse. Nem dormiria descansado. Fui buscá-la, claro”. “Isto não é uma obrigação. Elas já são família”, afirma.
A Ana Maria e a Maria Alexandrina também fazem parte desta “família” de carinho e proteção que o Sr. Carlos desencadeou, com a ajuda do RADAR. Mais novas que a D. Dores, uma ali perto do Paço Real, a outra, um pouco (grande) mais acima. Mas ambas percorrem o caminho até ao restaurante, todos os dias. “Há outros cafés e restaurantes perto de minha casa, mas eu gosto de vir aqui. Aqui é que eu estou bem”, diz Ana Maria. E isso não surpreende. Mais do que um espaço de refeição, o Paço Real é um lugar de acolhimento, onde se criaram laços de partilha, amizade e boa disposição que resistem ao tempo de cada uma.
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O projeto RADAR, do qual o Paço Real é um dos vários parceiros na freguesia de Santa Maria Maior, tem o acompanhamento da mediadora Filomena Palminha. “Nós, mediadores, claro está, visitamos os estabelecimentos de comércio local desta freguesia para monitorizar a população idosa. Nem sempre é fácil", explica. "Mesmo identificados, nem todos abrem a porta. Até porque grande parte dos radares comunitários eram lojas que já fecharam. E há uma grande parte dos estabelecimentos onde, atualmente, não se fala português, o que dificulta a interação entre todos, pois não têm um contacto tão próximo com essas pessoas. Mas o trabalho de proximidade faz diferença."
A polícia, também parceira do RADAR, acompanha estas visitas, reforçando a segurança e a confiança dos moradores.
Maria Alexandrina e Ana Maria têm também um forte apoio da Igreja de São Nicolau, onde frequentam o Centro Social, sendo que recebem quinzenalmente um cabaz de mercearia, além de um subsídio de 30 euros por mês. Este apoio só é possível graças a uma benemérita que deixou um legado financeiro para auxiliar pessoas em situação de vulnerabilidade. "Graças a Deus, ainda não preciso de muito", diz Maria Alexandrina, reconhecendo a importância de ter um filho sempre disponível para si. "Infelizmente, os filhos nem sempre estão presentes ", observa Carlos.
As tardes no Paço Real são uma espécie de “entre um café, uma refeição e uma conversa bem-disposta.”
As brincadeiras e os diálogos surgem naturalmente. "Dores, e então, namorados?" pergunta-se, na conversa, provocando risos. "Ora, já tenho 95 anos! Para isso já estou velha!", responde. “Mas tenho muitos sobrinhos. Todos me chamam de tia”, acrescenta, com orgulho nos olhos. E entre um gole de chá e uma bolacha, os dias passam, repletos de histórias e laços partilhados.
O Paço Real não é apenas um restaurante. É uma extensão da casa de quem já não tem com quem partilhar as refeições, um porto seguro para aqueles que encontram no Sr. Carlos não um simples comerciante, mas um verdadeiro amigo. “Um anjo da guarda”, como dizem. E, no final de contas, talvez seja isso que realmente importa: saber que, entre as ruas movimentadas da baixa da capital, existe um lugar onde ninguém fica para trás.