Fátima Ferreira, a vizinha e amiga que todos querem ter

31 de Agosto, 2022

Cresceu na rua onde ainda hoje trabalha, conhece desde pequena os vizinhos, as suas aflições e anseios. A sua porta está sempre aberta e pronta para ajudar quem precise. Seja para aviar uma receita, marcar uma consulta, tratar de papelada ou, simplesmente, ouvir quem vive na solidão.

Fátima Ferreira, 54 anos, tem um salão de cabeleireiro no número 20 da Rua Engenheiro Quartim Graça – na freguesia de Santa Clara – entre a Calçada de Carriche e o Jardim da Quinta de Santa Clara. Quis o destino que fosse cabeleireira. Já lá vão mais de 40 anos. Começou aos 13. Fala com paixão do seu trabalho. “Isto é uma arte. Gosto mesmo muito do que faço e do contacto com as pessoas.”

Boa conhecedora da realidade da sua rua e da comunidade, recorda que veio viver para o número 43 desta artéria quando tinha “apenas seis meses”. Foi aqui que deu os primeiros passos, fez as primeiras amizades e começou a ler. Brincava na rua, no tempo em que as tardes eram intermináveis. Foi criada com mimo e muitas rosas na alma. Naqueles dias mágicos de infância, recebia alegria em cada porta da sua rua.  A menina cresceu e fez-se mulher. Hoje continua a trazer a rua e as suas gentes no coração – e devolve-lhes tudo o que recebeu.

Em pleno mês de agosto, a rua está deserta e o calor faz-se sentir. Fátima abre as portas do seu estabelecimento e fala-nos sobre o que é ser um membro ativo e radar comunitário nesta rua e comunidade.

 

Uma porta aberta, um ponto de encontro e de ajuda

No seu salão, a dona Fátima conta que acaba por ser mais do que cabeleireira. Cortar, pintar, lavar e arranjar cabelos são apenas algumas das funções. As pessoas, maioritariamente mais idosas, procuram-na por conhecerem a sua boa vontade e agilidade na resolução de problemas, seja como administrativa, assistente familiar ou conselheira. Numa manhã, avia uma receita e marca uma consulta. Já à tarde, liga às operadoras de telecomunicações para que alguém não fique sem televisão. Vai aos correios, paga contas, contacta a Junta de Freguesia de Santa Clara. Faz o que pode para ajudar quem não tem ninguém ou quem vive longe dos seus familiares. A maior parte das vezes, simplesmente, ouve quem vive em solidão.

Graças a Fátima Ferreira, o número 20 da rua Engenheiro Quartim Graça é uma porta aberta para os problemas e anseios da população mais envelhecida. Apesar de ter 54 anos, a cabeleireira será sempre uma menina, aos olhos dos moradores mais velhos. É uma relação muito próxima, quase familiar, conhecendo bem as situações sociais. “O cabeleireiro acaba por ser um confessionário. As pessoas contam-me histórias que não contam a mais ninguém e pedem-me ajuda. Eu consigo fazer uma visita-guiada prédio a prédio e porta a porta nesta rua”, nota.

Fátima Ferreira dentro do seu salão

“O grande problema é a solidão”

A quinquagenária explica que “a população desta rua está envelhecida e o espírito comunitário foi-se perdendo. Mas o grande problema é a solidão. Há muita gente sozinha. Não têm com quem falar”, sublinhando que “a pandemia não ajudou. As pessoas viviam apavoradas. Tinham medo de morrer, acabando por se isolar ainda mais”, relata.

“Às vezes é complicado conciliar o trabalho e prestar o apoio solicitado, mas vai-se fazendo”, diz Fátima, com um sorriso. Por outro lado, Filomena Marques, 37 anos, mediadora de proximidade do projeto RADAR, diz que esta capacidade em gerir trabalho e, simultaneamente, dar resposta a solicitações de idosos explica-se “muito na boa vontade” da cabeleireira.

 

RADAR

Em 2019, depois de alguns contactos presenciais com a população idosa, a equipa do projeto ficou a conhecer a dona Fátima, a quem apresentou o RADAR, o primeiro projeto de intervenção comunitária que pretende identificar a população 65+ da cidade de Lisboa. “Sabíamos que a dona Fátima já tinha uma boa articulação com a Junta de Freguesia de Santa Clara, trabalhando em conjunto na resolução de situações. Foi fácil perceber, desde logo, que era uma pessoa que já estava envolvida e que conhecia a realidade desta população”, recordou, Filomena Marques.

Após a sua integração na rede de radares comunitários, a dona Fátima passou a identificar as pessoas desta faixa da população e a direcionar os pedidos mais urgentes para a equipa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Até ao momento, já foram encaminhados para o projeto, cerca de 20 moradores do bairro, que se encontravam em carência afetiva, social ou financeira.

 

“Isto de ajudar está em mim”

“Eu já fazia isto. Agora conto a ajuda da Santa Casa e do RADAR. Aderi ao projeto porque uma parte da população que aqui vive é bastante idosa e, depois, conheço as pessoas, as suas dificuldades e anseios. As pessoas veem-me como uma amiga, em alguém em quem podem confiar, e eu gosto de ajudar”, assegura.

A cabeleireira destaca a importância do projeto para esta população, mas lembra que, “durante a pandemia, o RADAR foi uma superajuda. Estavam sempre a ligar aos idosos, tinham a preocupação de perguntar se tinham falta de alguma coisa, fosse comida, medicamentos ou outra coisa qualquer, não deixando que nada faltasse.”

A dona Fátima confessa que leva o dia inteiro de mão no ar, a cumprimentar quem passa na rua. Reconhecimento claro da sua boa vontade. “Isto de ajudar está em mim. É um bichinho. Nasce connosco”, finaliza.