A Retrosaria Auri é uma loja com história situada bem no centro de Lisboa, na freguesia do Areeiro, que combate o isolamento social através de uma arte quase perdida: o tricot. É um espaço que parou no tempo e que soube fazer dele o seu maior aliado.
Maria Adelina Bibe é o nome da pessoa que se senta atrás do balcão de madeira escura, entre estantes quadriculares cheias de novelos de todo o tipo de lãs e derivados, e que carrega em si toda a história do estabelecimento que tem sobrevivido a várias gerações, a retrosaria Auri. Quis o destino que até o apelido de Maria Adelina estivesse relacionado com o ofício que escolheu para a sua vida profissional.
Quem passa pelo Nº. 10 da rua Oliveira Martins, paralela à icónica Avenida de Roma, não imagina todo o trabalho que se desenvolve dentro do estabelecimento com mais de 70 anos de existência e que faz parte dos radares comunitários do projeto RADAR da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (que visa identificar a população com 65 ou mais anos residente na cidade de Lisboa e construir sistemas de base comunitária de coesão social). Mais do que um local onde se estabelece um preço aos novelos de fios armazenados cuidadosamente nas estantes, este é também um sítio de amizade, partilha e, acima de tudo, de comunidade.
Foi em 2021 que, numa visita de rotina à freguesia, a equipa do RADAR reparou na Retrosaria Auri e a desafiou a ser radar comunitário. Desde então, este é um farol essencial para a equipa saber o que se passa no bairro e como estão as pessoas mais velhas. Atuando como uma autêntica confidente da vizinhança e agora, também, como ponto de ajuda através da plataforma RADAR, a proprietária considera ser “importante existirem projetos como este para apoiar os mais velhos, ainda mais numa freguesia tão envelhecida como é o Areeiro”.
Maria Adelina esclarece que “esta é uma casa muito conceituada aqui nesta zona da Avenida de Roma. As pessoas mais velhas conhecem este espaço desde sempre e é importante para nós que se mantenha esta relação de amizade. Só assim faz sentido continuarmos o trabalho de comunidade que fazemos. Nesta mesa já curámos muitas depressões e problemas de ansiedade”.
Margarida Cardoso é uma das participantes do grupo de tricot e, no alto dos seus 80 anos, não tem dúvidas de que “este convívio é essencial”.
“Eu estou muito tempo sozinha em casa e, parecendo que não, estou sempre desejosa que chegue quinta-feira para vir para o tricot”, diz Margarida enquanto tricota uma pequena camisola branca e verde para oferecer ao neto, adepto fervoroso do Sporting Clube de Portugal.
Com o passar do tempo, a loja, tal como as pessoas que fazem deste espaço uma “segunda casa”, foi-se alterando. Por aqui gerações foram passando. Quem antigamente era cliente, hoje é amigo, quem comprava, hoje ensina e é ensinado.
“Temos muitas avós, filhos e muitos netos que nos visitam. Esta é uma casa intergeracional. É engraçado que temos clientes que, ao longo do tempo, foram-se se tornando amigos, que vieram aqui comprar o enxoval de casamento e os atoalhados e agora temos aqui os netos de algumas dessas pessoas a quererem aprender esta arte e a falarem sobre algumas das peças que os avós compraram aqui há muitos anos atrás”, conta Maria Adelina durante uma breve conversa com outra “Tricota” (nome que dão aos integrantes do grupo de tricot), sobre o próximo passeio do “clube”.
Mas não se engane. Nesta loja existe mais do que um conjunto de senhoras a tricotar. Estas avós dos tempos modernos são mais do que isso. São pessoas ativas e inseridas numa comunidade que tem cada vez mais adeptos entre os mais novos.
Fruto desta procura dos mais jovens, Maria Adelaide partilha connosco os passeios que já fizeram com várias gerações e de como cada vez mais pessoas novas a procuram para perceber melhor esta arte.
“Nós temos aqui de tudo. Temos aqui médicas, cientistas, professoras, jovens e mais velhos que encontram no tricot um escape manual para os problemas do dia-a-dia. Temos muitos encontros e passeios, vamos a museus, participamos em workshops e até encontros regulares através do zoom fazemos com membros da comunidade de tricot do Brasil”, diz orgulhosa.
O motor para estes encontros e passeios é sempre o mesmo: a amizade e o combate ao isolamento social. Para Maria Adelina, “o tricot está na moda e a pandemia, para além das coisas más que trouxe e com o isolamento forçado em que tivemos de estar, trouxe também tempo para as pessoas se dedicarem a outras artes.”
Por tudo isto, ser radar comunitário foi, para Maria Adelina Bile, um processo natural e é com satisfação que nos explica que a equipa do RADAR “está sempre disponível e sabemos que podemos contar com ela para ser um apoio da população mais velha da vizinhança”.