O RADAR da Estrela: Quando a solidão é escutada
Lisboa é, cada vez mais, uma cidade que dorme pouco. Entre turistas que vagueiam e moradores apressados, há prédios que mudam de rosto, onde habitam vozes em casas silenciosas que quase ninguém ouve.
Quase ninguém, excepto o RADAR. No projeto da Santa Casa que se vê e se sente, há pessoas e gestos que ligam corações solitários a uma rede de cuidado e humanidade.
Andreia Rodrigues é responsável pela farmácia Infante Santo e conhece bem estes silêncios. Como o de uma senhora que, desde a pandemia, não saiu mais de casa. Anos passaram e a única vez que a Andreia a viu fora de portas foi um acaso. Preocupada, comunicou às mediadoras do RADAR. Estas tentaram contactá-la e foram a casa dela, acompanhadas pela polícia. A porta não se abriu. Mais tarde souberam, por uma vizinha, que estava hospitalizada.
“Há vários casos a assinalar. Muitos”, refere Andreia Rodrigues. “Estamos num bairro onde existem muitos idosos. É um bairro antigo, onde as casas foram, muitas delas, transformadas em alojamentos locais. Temos muitos turistas, mas depois temos aquela parte mais envelhecida que mora aqui. E que às vezes precisa de ajuda porque não tem mesmo ninguém. Ou a família que mora longe ou que não pode estar presente.”
Maria Alice Mendes é uma dessas mediadoras. Percorre, diariamente, a freguesia da Estrela, e a sua colega a de Campo de Ourique. Já encontrou de tudo. “Eu diria que depende das pessoas com quem contactamos. Depende… Se a pessoa estiver disponível para aceitar o apoio, corre tudo bem. Mas há pessoas estão já há tantos anos isoladas, sozinhas, chateadas, até, com a sociedade, que não aceitam. É um trabalho de ‘formiga’. Vamos visitando, regular e insistentemente, e percebendo se a pessoa, depois, com o tempo, ‘nos’ aceita. E já aconteceu mudarem de opinião.”

Depois, há o caso de alguns moradores no bairro, como a D. Nazaré, que é o oposto da reclusão — vai a tudo: ações, sessões, encontros. Gosta de estar, de participar, de aprender. Ou o da D. Odete, que passa as tardes na farmácia, como quem encontrou um porto seguro para combater uma grande solidão.
O que une todas estas histórias? O olhar atento de quem escolhe cuidar. Da parte da farmácia Infante Santo, os medicamentos são entregues em casa, sim, mas muitas vezes o que se entrega é atenção, presença, companhia. Um gesto tão simples como perguntar “está tudo bem?” pode mudar um dia inteiro, uma vida inteira.
O agente Vítor Marcolino conhece bem este terreno por dentro. Todos os dias percorre as ruas com as mediadoras. Diz que há surpresas, boas e más. Diz também que o RADAR devia ter mais apoio, mais vozes, mais tempo. “Porque os velhotes gostam de falar. Querem ser ouvidos. Precisam de ser ouvidos.”
E é essa a beleza e, ao mesmo tempo, a dor do RADAR: não é só sobre serviços, é sobre humanidade. É sobre criar tempo onde ele parece faltar. É sobre transformar freguesias em comunidades, vizinhos em cuidadores, e a cidade num lugar onde ninguém fica verdadeiramente sozinho, a menos que queira.
Em bairros antigos como a Madragoa, onde os idosos se misturam agora com turistas e novos residentes, a memória da vizinhança ainda resiste. Onde o RADAR acompanha e se faz acompanhar pela polícia, não por autoridade, mas por segurança.
O Projeto RADAR não apaga a solidão do mundo. Mas é um sussurro constante. “Estamos aqui.” É um fio de esperança lançado sobre quem ficou para trás. E nesse gesto, tão pequeno e tão imenso, reside o verdadeiro sentido de comunidade, levado a cabo por um conjunto de parceiros que se uniram em prol de uma causa: o combate à solidão. Na tal cidade que dorme pouco.