Quem sobe as ruas estreitas de Alfama, entrando pelo Largo do Chafariz, junto ao icónico Museu do Fado, não faz ideia dos segredos que estas ruas guardam e como ainda se preserva a identidade bairrista de Lisboa.
É numa destas ruas, escondida entre um amontoado de prédios, em encruzilhadas estreitas e escadas esculpidas a cinzel, que ainda sobrevive um estabelecimento que preserva o encanto de outros tempos e que faz do seu lema: “num vizinho, um amigo”, as delícias por quem lá passa.
Situado na Travessa Terreiro do Trigo, no número 4, há mais de 40 anos que o Mercado Abastecedor de Alfama é, mais que uma mercearia de bairro, uma porta sempre aberta e um ponto de encontro das gentes de Alfama. Ao leme deste “barco” está a dona Manuela, conhecida entre os fregueses como a “Manuela do João”.
Todos os dias, o ritual repete-se. Ainda o sol não nasceu, já Manuela desce as ruas do bairro onde reside há mais de 50 anos, para abrir as portas do estabelecimento. Entre o corrupio constante de pessoas a passar à sua porta, estrangeiros e “nativos”, o telefone toca para mais uma encomenda. Neste espaço, preserva-se a relação de antigamente em que os vizinhos ainda fazem a lista das compras pelo telefone e o carteiro deixa a correspondência para os mais velhos.
“É assim todos os dias. Mas por norma são as pessoas mais velhas, que, por estarem sozinhas, ou por já não conseguirem vir cá a baixo ligam para fazer uma ‘listinha’ de algumas coisas para alguém depois levar-lhes a casa”, conta Manuela.
E a preocupação com os vizinhos é constante. O facto de saber que existem muitas pessoas que vivem completamente isoladas e já sem família, aciona o espírito de solidariedade de Manuela. “Toda a gente do bairro conhece-me, aqui fiz a minha vida, e todos sabem que a minha loja é uma porta aberta e que estou sempre aqui para ajudar no que conseguir”, explica Manuela.
Sinal da mudança dos tempos, Manuela acredita que Alfama tem tudo para ser “um dos melhores sítios para viver de Lisboa”, embora acredite que o turismo veio trazer “uma nova dinâmica” a estas ruas. “Antigamente, quem morava aqui eram trabalhadores que dividiam casas com outras famílias, agora a dinâmica mudou, as casas ficaram mais caras, muitas pessoas foram embora e ficaram apenas os mais velhos que aqui nasceram e ficaram a vida toda”, conta.
Foi a pensar nestas situações, que o Mercado Abastecedor de Alfama foi desafiado pela equipa de mediadores do RADAR a entrar na plataforma do projeto, como radar comunitário. Em 2020, a mercearia passou a integrar a rede de radares comunitários, e, de lá para cá, a parceria tem-se revelado de extrema utilidade para a população mais velha do bairro.
“Foi muito bom o RADAR estar em Alfama. Eles são incansáveis com as pessoas, estão sempre prontos a ajudar-nos em tudo”, salienta Manuela, recordando que desde que é radar comunitário, já identificou mais de uma dezena de pessoas, com carência afetiva, social e financeira que, “felizmente, estão melhor agora porque o RADAR existe na vida delas”.