É no coração do Bairro Alto, na rua do Diário de Notícias, que existe um espaço que oferece diariamente carinhos a granel. A Mercearia do Pai Júlio, onde as histórias do passado ganham vida, entre um trago no café e um virar de página de jornal.
Amanhece em Lisboa. O rebuliço da noite que enche todos os dias o Bairro Alto, ex-líbris da vida noturna lisboeta, dá lugar a um espaço calmo e tranquilo, à medida que o sol espreita a colina do Chiado. Todos os dias, o ritual repete-se.
Entre camiões que navegam pelas ruas estreitas do bairro e pequenos comércios locais que abrem as suas portas ao primeiro crepúsculo o bairro vai ganhando uma nova dinâmica, com moradores e comerciantes a encontrarem-se à porta dos estabelecimentos, para trocarem algumas ideias e discutirem as primeiras linhas dos jornais.
Uma dessas pessoas é o Sr. Júlio, mais conhecido entre os moradores do Bairro Alto, como “Pai Júlio”, título que emprestou para dar nome à mercearia que inaugurou, em 2014, e que outrora foi um talho de referência nesta parte da cidade.
Embora recente, o estabelecimento do “Pai Júlio” conserva grande parte da estética das antigas mercearias de bairro. “Quando abrimos o espaço, a nossa primeira ideia era tentar conservar tudo o que podíamos do que isto foi. Pensámos na vertente estética do espaço de maneira a atrair todos os clientes, no entanto, foi engraçado que as pessoas mais velhas, que aqui moram há 30 ou 40 anos, lembrassem de histórias porque têm um sentimento de pertença ao estabelecimento”, diz o proprietário.
Conhecedor do Bairro Alto, desde os tempos em que era jovem, Júlio acredita que o Bairro Alto tem tudo para ser “um dos melhores sítios para viver de Lisboa”, embora acredite que o turismo veio trazer “uma nova dinâmica” a estas ruas. “Ainda temos a morar no Bairro Alto muita gente idosa, sendo que o maior problema é que no mesmo prédio existem vários alojamentos locais e depois uma única pessoa a morar lá o ano todo, o que cria um isolamento muito grande para os mais velhos”, conta.
Foi a pensar nestas situações, que a Mercearia do Pai Júlio foi desafiada pela equipa de mediadores do RADAR a entrar na plataforma do projeto, como radar comunitário. Em 2021, a mercearia passou a integrar a rede de radares comunitários, e, de lá para cá, a parceria tem-se revelado de extrema utilidade para a população mais velha do bairro.
“O RADAR é sempre bem-vindo a esta casa. Eles são os anjos da guarda para muitas pessoas que aqui vivem”, salienta Júlio, recordando que “desde que estabelecemos esta parceria, já conseguimos identificar várias pessoas para o projeto e que, felizmente, estão melhor agora porque o RADAR existe na vida delas”.
A mercearia é um ponto de encontro, um espaço de convívio, que reúne várias gerações, de diversos países. Para o “Pai Júlio” “são as pessoas que fazem a casa e não contrário”. Tentamos ajudar como podemos. Com alguns, clientes ainda mantemos o método de uma mercearia antiga, em que levamos as compras a casa, cobramos só no final do mês e que ligam só para falar um bocado porque estão sozinhos. São estas pessoas que nos enchem a alma e que fazem deste espaço o que ele é”.